O álcool, a mediunidade e a arquitetura moderna compõem minhas lembranças da década de 1920. Em 1922, eu atravessava uma tarde parisiense bebendo vinho em um café, deserto àquela hora, da Place Saint-Michel. Le Corbusier chegou. Seu ego entupiu o ambiente. Ele era um médium, possuído pelo Espírito Novo. Em transe, afirmava que Frank Lloyd Wright não projetou a Residência Robie e que Erich Mendelsohn não projetou a Torre Einstein. O infinito e invisível Esprit Nouveau é que se expressava por meio daqueles pretensos criadores. Para Corbusier, o único apto a compreender e superar tal Espírito era Ele, Corbusier. Deixei-o. E ele continuou lá, palestrando e assistindo a seu seminário solo. Parti para a Alemanha.
A Bauhaus de Weimar era uma escola de médiuns, todos possuídos pelo Espírito do Tempo. Walter Gropius propagandeava a catedral do socialismo. Johannes Itten ofereceu-me sopa de alho e voltou a levitar em auras coloridas. Levitou até Theo van Doesburg invadir a Bauhaus, discursando em fúria. Doesburg era um médium possuído pelo Espírito das Máquinas. Acusou Itten de irracional, de místico tolo (Verdammt Hexenmeister) e de ter ideias irrealizáveis (scheisse in kopf). A cada xingamento, a levitação sofria turbulências. Até que, em 1923, Itten desistiu, desceu ao solo e disse: “Adeus, Bauhaus!” (Gehen sie alle in arschloch, mathematische Schwachköpfe).
Naquele momento, tudo se transformou em eficiência, precisão e volumes elementares. Começava a segunda fase da escola. Josef Albers e Wassily Kandinsky começaram a reduzir paisagens, gatos e cachorros às formas básicas (o que gerou protestos da sociedade de proteção aos animais). Gropius atirou longe minha sopa de alho, por considerá-la expressionista. Substitui-a por comidas racionais: zylinderverglasungfermentiertegerste (cilindros envidraçados de cevada fermentada), kartoffelbällchen (esferas de batatas), kohlinwürfelgeschnitten (cubos de repolho) e zylinderschweingekocht (porco moído embalado em cilindros; ou seja: salsicha). Tudo mudou. Até a cidade. Partimos de Weimar, rumo a Dessau. Mas eu bebera tantos cilindros que me perdi. Acordei em Moscou, numa comuna de arquitetos.
Konstantin Melnikov e Jakob Tschernikov tinham fé no futuro e planos mirabolantes para a nova arquitetura. Eles só não tinham o que comer. Para espantar a fome e o frio, tomamos vodkas. Depois, chegaram El Lissitski, Ivan Leonidov, Ilya Golosov Zuev, Vládmir Tátlin e os irmãos Vesnin. Todos eram médiuns, possuídos pelo Espírito Revolucionário. E então chegou a notícia da morte do Lênin. Saí para fora, apanhar alguma lenha que nutrisse a lareira. Quando voltei, os Vesnin e o Tátlin haviam desaparecido. Ninguém sabia de nada. Folheei livros enfileirados na estante. Quis mostrar algumas imagens aos outros. Zuev, Lissitski e Tschernikov sumiram. Ninguém sabia de nada. Olhei para o livro. As imagens já não eram as mesmas. Fui até a cozinha pegar mais vodka. Voltei e só o Melnikov mantinha-se na sala. Ele não sabia de nada. Pela janela, vi o arquiteto Alexei Shchusev, em pose sorrateira, projetando o túmulo do Lênin e me vigiando. Engrolei a vodka. Deslizei pelas sombras. Fugi para Nova York.
Scott Fitzgerald me ofereceu gin. Três litros depois estávamos, de smoking, em um coquetel no Waldorf Astoria. O arquiteto Goldwin Starrett comentou a possibilidade de criar parques onde os usuários pudessem comer lagostas, vestidos de pierrôs, contemplando a lua. Propus algo mais moderno: arranha-céus que abrigassem metropolitanos dispostos a comer ostras, com luvas de boxe, nus, no enésimo andar. Ele comentou, estarrecido: “Wow! This is the architectonic jazz spirit!”. Eu disse a Raymond Hood que os arquitetos de Manhattan representavam uma vanguarda mundial, pois criavam edifícios cujos vários pavimentos recebiam atividades independentes. Esse Novaiorquismo, ou Manhatannismo, merecia um manifesto. Nem que fosse um manifesto retroativo. Scott Fitzgerald encerrou a conversa, prevendo: “um dia, um médium holandês escreverá esse manifesto. Agora, beba!”.
Bebi tanto que perdi o final da festa. Nem vi o crack de Wall Street. Acordei em 1935, no dia em que Corbusier chegou a Nova York. Ele me contou maravilhas a respeito dos Rockfellers e da América do Sul. Acho, porém, que ele falou demais. Duvido que, naquelas lonjuras, alguém vá se interessar por arquitetura moderna ou pelo Esprit Nouveau…
ESCRITÓRIO DE ARQUITETURA THOBIAS
® é uma criação de Irã Taborda Dudeque, arquiteto e historiador. Suas ficções arquitetônicas começaram em 1998, como um fanzine distribuído na pós-graduação da FAUUSP, e também estão publicadas em http://arquiteturathobias.blogspot.com
publicado em http://www.revistaau.com.br/
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